9 de dezembro de 2008

A dor que nunca passa

Nos anos 1970, quando abriam a BR-364 no Acre, ela cortou ao meio oSeringal Bagaço, onde eu morava com minha família. À derrubada da mataseguiu-se uma epidemia violenta e incontrolável de sarampo e malária.Era gente doente ou morrendo em quase todas as casas. Perdi um primo emeu tio Pedro Ney, que foi uma das pessoas mais importantes da minhainfância. Morreu minha irmã de quase dois anos e, quinze dias depois,outra irmã, de seis meses. Seis meses depois, morreu minha mãe. Tudoera avassalador, assustador. Uma dor enorme, extrema, que nuncapassou. Para sair disso, tivemos que reconstruir, praticamente, o sentido inteiro do mundo. Aceitar o inaceitável, mas carregá-lo parasempre dentro de si. Ir em frente, enfrentar a dureza do cotidiano,sobreviver, cuidar dos outros. Viver, enfim, e dar muito valor à vidae às pessoas.
Em 1985, numa das maiores enchentes do rio Acre em Rio Branco, eumorava no bairro Cidade Nova, na periferia da cidade, numa pequenacasa de onde tivemos que sair às pressas, levando o que foi possívelnuma canoa. O resto foi levado pelas águas, inclusive o único retratoque tínhamos de minha mãe.Penso agora nisso tudo e acho que consigo entender o que sentem oscatarinenses, mas ainda estou longe de alcançar o significadoestarrecedor de uma perda tão total e instantânea como a que sofreram.Na escuridão, o morro descendo, destruindo tudo, a busca desesperadapelos filhos, a impotência. E, depois, descobrir-se só em meio aocaos: acabou a casa, foram-se as pessoas amadas, o lugar no mundo. Nãohá mais nada, só a vida física e a força do espírito.Meus filhos andam pela casa com todo vigor, com toda a beleza dajuventude, e sequer consigo imaginar o que seria, de uma hora paraoutra, vê-los engolidos pela terra, debaixo de toneladas de escombrosou mutilados para o resto da vida. É algo terrível demais até no planoda imaginação. Fere a própria alma tão fundo que chega a serimpossível entender plenamente a profunda tristeza de quem enfrentaessa realidade.
Na Londres de 1624, os sinos da catedral de São Paulo, onde o poetaJohn Donne era o Deão, tocavam quase ininterruptamente anunciando asmilhares de mortes causadas pela peste. Atingido por grave enfermidade(que chegou a ser confundida com a peste) Donne escreveu então um deseus textos mais conhecidos, a Meditação XVII: "Nenhum homem é umailha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte dotodo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como sefosse um promontório, assim como se fosse uma parte de teus amigos oumesmo tua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parteda humanidade; e por isso, nunca mandes indagar por quem os sinosdobram. Eles dobram por ti."Hoje, no mundo, os sinos dobram por todos nós e para nos acordar.Grandes desastres podem virar acontecimentos corriqueiros.
Não se pode afirmar peremptoriamente que a tragédia de Santa Catarina deriva, emlinha direta, das mudanças climáticas identificadas no relatório doIPCC, o Painel Internacional de Mudanças Climáticas da ONU. Mas emtudo se assemelha às previsões de possíveis impactos da mudança noclima do sul do Brasil, até o final do século 21.A natureza, numa pedagogia sinistra, parece exemplificar o quesignificam esses fenômenos extremos que, em várias regiões do planeta,tenderão a provocar períodos de seca muito mais severos e outros comprecipitações intensas.As ações de mitigação necessárias e as adaptações para enfrentar essesefeitos e reduzir nossa vulnerabilidade diante deles, ainda sãoprecárias e estão atrasadas. Os países ricos, detentores de recursos,conhecimento e tecnologia, já avançam em medidas para se proteger. As piores conseqüências deverão recair sobre os países pobres e os emdesenvolvimento. A urgência é auto-explicável. Não é um cientista quemo diz e nem um livro. É a natureza, cujos avisos e alertas têm sidoinsanamente ignorados.
O Brasil, que ontem lançou o seu Plano Nacional de MudançasClimáticas, não tem como deixar de fazer a sua parte, mesmo sem osmeios disponíveis nos países ricos. O acontecido em Santa Catarina éum sintoma e deve ser seguido de um esforço de grandes proporções, deinício imediato, para tentar evitar que se repita.É preciso que cada um de nós, autoridades públicas, empresas ecidadãos, pensemos nos mortos, nas famílias inteiras soterradas, nasvidas destroçadas debaixo do barro, antes de sermos tolerantes comocupação em encostas, com destruição de matas ciliares, com oadensamento de áreas de risco, com mudanças de conveniência naslegislações. Não há mais espaço para empurrar os problemas ambientaiscom a barriga, como tentam fazer alguns, e deixar para "o próximo" oônus de medidas ditas antipáticas. A omissão que ceifa vidas humanastem que acabar, mesmo à custa de incompreensões.Nos tempos atuais, há mais um componente na agenda ética: não sedeixar corromper diante das pressões para ignorar a proteção ambientale as medidas de precaução exigidas pela intensificação dos fenômenos naturais.
Quem detém algum tipo de representação pública deve se convencer de que é preciso mudar profunda, rápida e estruturalmente osusos e costumes, de modo a preparar o País para um futuro de sériosdesafios ambientais. Cada vez mais, não é só uma questão de errar,corrigir o erro e aprender com ele. Agora a palavra de ordem éprevenir o erro, para que não se repitam os olhares perdidos, osrostos esvaziados, o choro inconsolável, a desesperança e as mortesque vimos nesses últimos dias em Santa Catarina.
Por : Marina Silva professora secundária de História, senadora pelo PT doAcre e ex-ministra do Meio Ambiente.
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3 comentários:

  1. Concordo com você. Também fico solidário com os momentos que você teve no passado mas agora esta tudo bem! segue enfrente sem olhar para tráz, a vida é assim! apenas diz muito obrigado meu Deus por tudo. que você se fortalecerá.
    Deus sabe colocar tudo no devido lugar.

    abraços.

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  2. Realmente muito comovente sua história de vida. Tem pessoas que como vc pode relatar como doi a perda e a incerteza do amanha, sim essas pessoas tem um futuro incerto, quando perdemos alguem nao sabemos como agir, e nem queremos agir. Tem homens que ainda ousam dizer que são fortes o bastante para andarem sozinhos, são esses que não conseguem se erguer quando caem.


    Ps: Abraços!!

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